Seguro de vida universal e a necessária regulação complementar pela SUSEP
Fonte: Editora Roncarati
Autores: Thiago Junqueira[1] e Karine Lemos[2]
1. Introdução
A recém-publicada Resolução CNSP nº 484, de 31 de outubro de 2025, disciplina as regras e critérios para a estruturação, comercialização e operacionalização do Seguro de Vida Universal. Ela revoga, com efeitos imediatos, a Resolução CNSP nº 344/2016 – normativa que, embora formalmente vigente, jamais teve aplicação prática no mercado brasileiro. As lacunas estruturais da antiga norma, somadas à ausência de condições tributárias adequadas, tornaram inviável a comercialização dessa modalidade de seguro no país.
Mas, afinal, do que se trata? O Seguro de Vida Universal se apresenta como modalidade que combina elementos do seguro de vida tradicional com mecanismos de acumulação de recursos, aproximando-se, sob certos aspectos, de características típicas da previdência privada. Nessa arquitetura, o segurado constitui provisões ao longo do período contratual ao mesmo tempo em que mantém cobertura securitária para riscos previamente estabelecidos. Trata-se, portanto, de uma solução integrada e indivisível, que une proteção e acumulação.
Nesta coluna, serão apresentadas algumas das principais inovações introduzidas pela Resolução CNSP nº 484/2025, bem como elementos que evidenciam a necessidade de regulação complementar pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) antes que esse produto possa ser comercializado de forma segura e adequada.
A análise desenvolvida ao final do artigo, baseada no comportamento histórico da SUSEP na regulação de produtos análogos, servirá ainda como parâmetro para projetar cenários prováveis para os próximos meses e para avaliar a efetiva viabilidade de introdução do Seguro de Vida Universal no mercado brasileiro.
2. Principais inovações da Resolução CNSP
No atual cenário, marcado pelo crescente interesse do mercado em compreender as novas diretrizes do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) para o Seguro de Vida Universal, destacam-se algumas das principais inovações dispostas na Resolução:
2.1. Revisão das nomenclaturas técnicas
A normativa substitui as denominações “Capital segurado de risco” e “Capital segurado de acumulação” por “Parcela de risco” e “Parcela complementar”, respectivamente. A mudança não é meramente terminológica: reflete nova concepção técnica sobre a estrutura do produto, buscando maior alinhamento com práticas internacionais[3] e maior clareza na comunicação contratual com os segurados.
2.2. Alteração do prazo mínimo de vigência
A Resolução reduz de cinco para quatro anos completos o prazo mínimo de duração dos contratos de Seguro de Vida Universal.[4] A alteração amplia o campo de desenho de produtos e permite que as seguradoras desenvolvam soluções com vigências mais curtas, facilitando a adaptação a perfis e necessidades distintas.
2.3. Indexação de provisões ao CDI
A nova regra autoriza a indexação do saldo da provisão de respaldo ao Certificado de Depósito Interbancário (CDI), conforme o art. 33 da Resolução. A medida confere parâmetro objetivo para a remuneração das provisões acumuladas ao longo da vigência contratual, reforçando transparência e previsibilidade.
2.4. Resgate de provisões
A Resolução também permite o resgate total ou parcial dos valores da provisão de suporte ao risco. O resgate pode ocorrer ao final do período contratado ou, conforme previsto na própria normativa, durante a vigência do contrato para finalidades específicas.
Além disso, a operacionalização do Seguro de Vida Universal se destaca pela flexibilidade, incluindo: (i) ajustes no valor e na frequência dos prêmios; (ii) possibilidade de redução ou suspensão temporária de pagamentos; e (iii) utilização da provisão acumulada para quitação de obrigações futuras.
Esses instrumentos conferem dinamismo ao produto e permitem que ele acompanhe as mudanças nas condições pessoais e financeiras do segurado ao longo da vigência.
3. Lacunas regulatórias: alguns exemplos do que falta ser disciplinado pela SUSEP
A despeito da publicação da Resolução, é necessário verificar as limitações ainda impostas à comercialização do Seguro de Vida Universal, de forma que eventuais descompassos entre o mercado e os órgãos reguladores sejam evitados. Isso porque a Resolução deixa expressamente a cargo da SUSEP a regulação de dimensões técnicas e operacionais consideradas centrais para a comercialização adequada do produto.
Os temas objeto de delegação à SUSEP incluem, dentre outros aspectos, os a seguir delineados.
3.1. Restituição de provisões e reversão de resultados em caso de ausência de cobertura
A Resolução prevê situações em que, inexistindo cobertura securitária após o aviso de sinistro – quando o risco não estiver coberto, incluindo os períodos de carência ou de suspensão – haverá restituição de valores ao segurado ou aos beneficiários. Nos termos do art. 15, “o saldo da provisão de suporte ao risco e, quando for o caso, da PEF serão restituídos, consoante diretriz em normativo complementar”, seja por meio de pagamento à vista ou de conversão em renda. O dispositivo estabelece ainda que o plano será automaticamente cancelado na data de disponibilização desses valores, “na forma regulamentada”, sem que haja qualquer outro valor devido pela seguradora.
O art. 16 da Resolução, por sua vez, trata da possibilidade de reversão de resultados financeiros, remetendo igualmente às “pertinentes disposições regulamentares”, sem detalhar critérios, limites ou forma de apuração.
A própria justificativa do regulador, constante do Quadro Comparativo da Consulta Pública nº 3/2025, confirma a necessidade de norma complementar ao afirmar que “as especificidades da restituição dos valores serão tratadas em Resolução Susep (antiga Circular Susep)”, razão pela qual a menção expressa a normativo complementar foi inserida na redação final da Resolução.
3.2. Restituição ao segurado no final da vigência caso não tenha ocorrido o evento coberto pelo seguro
O art. 25 da Resolução dispõe que, ao final da vigência da apólice ou do certificado individual, caso não tenha ocorrido evento coberto, “o saldo da provisão de suporte ao risco, e quando for o caso, da PEF, será restituído ao segurado, consoante diretriz em normativo complementar”, vedando-se a cobrança de quaisquer despesas, exceto o carregamento postecipado, se houver, e os tributos eventualmente devidos. O dispositivo, entretanto, não define critérios para a apuração desses valores, tampouco estabelece o procedimento operacional para o pagamento, o que reforça a dependência de regulação adicional pela SUSEP.
Durante a análise das contribuições recebidas na Consulta Pública nº 3/2025, o regulador confirmou essa lacuna. No Quadro Comparativo que acompanha a minuta, registrou-se expressamente que “as especificidades da restituição dos valores serão tratadas em Resolução Susep (antiga Circular Susep)”, esclarecendo, ainda, que foi “incluída menção a normativo complementar para tratar das especificidades da restituição”. Permanece, assim, em aberto a definição dos parâmetros técnicos e operacionais que orientarão a restituição dos valores ao término da vigência contratual.
4. Análise de intervalos: quais são os prazos possíveis para publicação da Resolução SUSEP?
O modelo regulatório brasileiro de seguros estrutura-se tradicionalmente em duas camadas normativas complementares: as Resoluções do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), responsáveis por estabelecer diretrizes gerais, princípios estruturantes e limites regulatórios, e as Circulares da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), destinadas a detalhar os procedimentos técnicos e operacionais necessários à concretização dessas diretrizes no cotidiano do mercado. Trata-se de uma divisão funcional consolidada, na qual o CNSP exerce função normativa superior, enquanto à SUSEP compete a operacionalização prática e a especificação dos comandos regulatórios de maior complexidade.[5]
Nesse contexto, as Circulares SUSEP (ou Resoluções SUSEP, conforme recente indicação da autarquia) cumprem papel instrumental ao oferecer parâmetros procedimentais mínimos para seguradoras, intermediários e consumidores, funcionando como guias operacionais que possibilitam a aplicabilidade das Resoluções. Ainda assim, importa destacar que não há, no ordenamento jurídico, qualquer vedação expressa que impeça a comercialização de produtos apenas com fundamento na Resolução do CNSP.
A norma superior é, em tese, suficiente para conferir validade e eficácia à oferta do produto. Contudo, o caso do Seguro de Vida Universal apresenta especificidades que o diferenciam de outras modalidades de seguro: a Resolução CNSP nº 484/2025 deixou em aberto aspectos técnicos e operacionais cuja definição é indispensável para a adequada execução do produto, conforme demonstrado no tópico 3. Soma-se a isso o fato de que o tratamento tributário aplicável ao produto depende de definição legal mais adequada e de alinhamento interpretativo pela Receita Federal do Brasil. Trata-se, portanto, de aspecto que não pode ser suprido por norma infralegal da SUSEP, exigindo coordenação institucional mais ampla e solução em nível legislativo ou interpretativo pela administração tributária.
Em razão dessas lacunas, a comercialização imediata do seguro, sem a correspondente Resolução SUSEP, geraria um ambiente de elevada indefinição regulatória e operacional, expondo as seguradoras a riscos que ultrapassam aqueles usualmente presentes no lançamento de produtos de menor complexidade. A prudência recomenda, portanto, que se considere a experiência histórica da SUSEP na publicação de normas complementares, de modo a projetar intervalos razoáveis para a futura publicação do ato normativo aplicável.
4.1. Evidências empíricas: intervalos recentes entre atos normativos do CNSP e da SUSEP
A análise empírica de marcos regulatórios recentes mostra que os intervalos entre Resoluções do CNSP e Circulares da SUSEP variam substancialmente. Em seguros de pessoas, verificou-se publicação simultânea da Resolução CNSP nº 439 e da Circular SUSEP nº 667, ambas de 4 de julho de 2022, enquanto no caso da cobertura por sobrevivência, disciplinada pela Resolução CNSP nº 464, de 19 de fevereiro de 2024, a Circular SUSEP nº 699 foi publicada apenas em 4 de abril daquele mesmo ano, revelando um hiato aproximado de dois meses.
Situação semelhante se observa nos seguros de danos: a regulação do seguro de garantia estendida, pela Resolução CNSP nº 438 e pela Circular SUSEP nº 659, deu-se simultaneamente em abril de 2022, ao passo que o seguro rural experimentou intervalo mais longo – cerca de cinco meses – entre a Resolução CNSP nº 404, de 26 de março de 2021, e a Circular SUSEP nº 640, de 23 de agosto do mesmo ano.
Esse panorama revela, portanto, a inexistência de padrão determinístico quanto aos prazos adotados pelos órgãos reguladores. Os intervalos oscilam entre publicações conjuntas e prazos dilatados, podendo variar conforme a complexidade técnica do produto, o grau de maturidade das discussões internas da autarquia e a conjuntura política e institucional. Acrescente-se que, em diversos casos – sobretudo em seguros de danos –, produtos passaram a ser comercializados apenas com base em Resoluções do CNSP, sem Circular (ou Resolução) SUSEP complementar e sem registro de sanções regulatórias decorrentes dessa prática.[6]
No caso do Seguro de Vida Universal, entretanto, a combinação entre as características próprias do produto e a atual sobrecarga de trabalho normativo da SUSEP – resultante da necessidade de adaptação ao novo regime introduzido pela Lei do Contrato de Seguro (Lei nº 15.040/2024) – aponta para a plausibilidade de que a Resolução SUSEP complementar seja publicada em prazo mais longo, possivelmente entre três e seis meses após a Resolução. Esse intervalo, embora estimativo, decorre tanto de precedentes regulatórios quanto das peculiaridades técnicas do produto.
Esse comportamento histórico reforça que a comercialização antecipada do Seguro de Vida Universal, embora juridicamente possível, exige grau excepcional de diligência, robustez técnica e maturidade operacional, dada sua sofisticação e seu ineditismo no mercado brasileiro. Em comparação com produtos de danos que foram lançados apenas com fundamento em Resoluções, o universal life demanda cautela superior, sobretudo porque suas indefinições operacionais e tributárias são mais profundas e sensíveis ao equilíbrio técnico-financeiro das carteiras de seguradoras.
5. Período de transição: oportunidade para estruturação operacional
O intervalo que antecede a publicação da Resolução SUSEP complementar, longe de configurar um simples vácuo regulatório, constitui oportunidade estratégica para as seguradoras interessadas em comercializar o Seguro de Vida Universal. Trata-se de período no qual é possível avançar na preparação interna necessária à futura implementação do produto.
Esse tempo pode ser utilizado para a estruturação de governança corporativa específica, para o desenvolvimento de modelos de precificação atuarialmente sólidos, para a implementação de sistemas e controles internos adequados, para o desenho da infraestrutura operacional e, ainda, para o estabelecimento de procedimentos documentados voltados às funcionalidades críticas do produto.
Mostra-se especialmente relevante a adoção de postura prudencial na definição de critérios internos relacionados ao resgate de provisões, à restituição de excedentes e à operacionalização das coberturas, antecipando, tanto quanto possível, aspectos que serão posteriormente disciplinados pela SUSEP. Essa preparação prévia não apenas demonstra comprometimento com a conformidade regulatória, como também mitiga riscos operacionais decorrentes de eventuais deficiências em sistemas, processos ou controles, posicionando a seguradora para uma transição mais suave no momento da publicação da norma complementar.
Post scriptum
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(24.11.2025)
[1] Thiago Junqueira é Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados, é Professor de Direito do Seguro e Resseguro na FGV e Professor convidado da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Atualmente, exerce as funções de Diretor da AIDA Brasil e de Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil. Contato: thiago@junqueiragelbecke.adv.br.
[2] Karine Lemos é Doutoranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Novos Direitos, Novos Sujeitos, pela Universidade Federal de Ouro Preto. Especialista em Direito Digital, Proteção de Dados e Cibersegurança pela PUC/PR. Professora de Direito do Consumidor e Seguros da Escola Superior de Advocacia (ESA) – OAB/RJ. Advogada no Junqueira & Gelbecke Advogados. Contato: karine.lemos@junqueiragelbecke.adv.br.
[3] O Seguro de Vida Universal (Universal Life) é um produto consolidado há mais de quatro décadas nos Estados Unidos, representando grande parte das vendas de seguros de vida individuais. O sucesso do produto se deve principalmente à sua flexibilidade e à combinação eficiente de proteção e acumulação, característicasvalorizadas pelos consumidores americanos. No contexto latino-americano, o México se destaca como um caso de sucesso na implementação do Universal Life. O modelo mexicano, que permite o resgate de valores para reposição de renda, revela uma interessante fonte de inspiração para a atual regulação brasileira.
[4] Conforme art. 26 da normativa: “Os planos de seguro de que trata esta Resolução deverão, obrigatoriamente, ter prazo de vigência maior ou igual a quatro anos completos”.
[5] Sobre o tema, confira-se os artigos 32 e 36 do Decreto-lei n° 73/1966.
[6] Entre os exemplos mais recentes, destacam-se: a Resolução CNSP nº 472/2024, que disciplina os Seguros de Responsabilidade Civil dos Transportadores de Carga; a Resolução CNSP nº 478/2024, referente ao Seguro de Responsabilidade Civil de Veículo (RC-V); a Resolução CNSP nº 447/2022, que regula o seguro habitacional; a Resolução CNSP nº 460/2023, que trata do Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Passageiros; e a Resolução CNSP nº 407/2021, relativa aos seguros de danos para cobertura de grandes riscos – todas sem Circular SUSEP (ou Resolução SUSEP) correspondente até a presente data.
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