Os NFTs e o contrato de seguro
21, Fev. 2022
Os NFTs e o contrato de seguro
Por Priscila Mathias Fichtner e Claudio Miranda
Fonte: Revista Consultor Jurídico
O crescimento da comercialização de ativos digitais, entre
os quais os atualmente tão badalados NFTs ("non fungible tokens" ou
"tokens não fungíveis"), tem movimentado a economia e gerado o desejo
pela aquisição de produtos novos e exclusivos, dando ensejo a golpes, agora
aplicados no "metaverso". Recentemente foi noticiado que as fraudes
com NFTs e outros crimes envolvendo criptomoedas somaram US$ 14 bilhões em
2021, representando um aumento de quase 80% em relação a 2020 [1]. Os dados
assustam e chamam a atenção para a necessidade de criação de mecanismos de
proteção contra os riscos digitais.
A equação envolvendo a soma dos elementos riscos e proteção
certamente trará, como produto, o contrato de seguro, cuja base conceitual já é
conhecida, mas que está diante de desafios novos, advindos de uma realidade
paralela, em construção.
A revolução tecnológica atual, de fato, traz outras
problemáticas a serem enfrentadas pelos seguros. Os riscos tornaram-se mais
complexos, sofisticados e desafiadores. Coube à Ulrich Beck desenvolver a noção
de "sociedade de risco" (Risikogesellschaft) como forma de
conceptualizar as modificações estruturais perceptíveis na modernidade quando
contrastada com a "sociedade industrial" (Industriegesellschaft)
prevalente outrora [2].
A inserção da tecnologia no cotidiano promoveu uma
virtualização da vida, da economia e da sociedade. Em um mundo que se discute
um "metaverso", riscos digitais não podem ser encarados como uma
ilusão, a la Dom Quixote.
Ao contrário, como já adiantado linhas atrás, são
economicamente relevantes, sendo necessário que se discuta a sua alocação e
distribuição. O Direito, diante de sua natureza de se fazer presente onde novos
desafios sociais aparecerem, há de oferecer respostas. Em um futuro de
volatilidade generalizada, a atividade econômica necessita, até para fins de
desenvolvimento, de instrumentos jurídicos adequados para assegurar eficiência,
rentabilidade e delimitação de riscos [3].
O seguro contra riscos digitais é uma primeira ferramenta
que visa a oferecer uma resposta a esses novos problemas. Ocorrências como
vazamento de dados, roubos de senha, hackeamentos, são cada vez mais
frequentes, e têm impacto econômico significativo. Por exemplo, em pesquisa
coordenada pela IBM Security, analisando fatos entre maio de 2020 e março de
2021, constatou-se que o custo total médio global de uma violação de dados é de
US$ 4,24 milhões, indicando quão expressivos podem ser o seu impacto econômico
[4].
A Circular nº 638, de 27 de julho de 2021, da Superintendência de Seguros Privados (Susep) dispõe sobre os requisitos de segurança cibernética a serem observados pelas sociedades seguradoras, entidades abertas de previdência complementar (EAPCs), sociedades de capitalização e resseguradoras locais. A Resolução nº 451, de 20 de julho de 2021, do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), que versa sobre open insurance, elenca a segurança cibernética como requisito essencial para o credenciamento e funcionamento das sociedades iniciadoras de serviço de seguro [5], bem como para garantir a autenticação do cliente [6].
A segurança cibernética vem intensamente sendo buscada pelo
mercado segurador, o que facilita o desenvolvimento de proteção à
comercialização de NFTs.
Os NFTs são uma espécie de certificado digital de
propriedade, amparado pela tecnologia de blockchain. Dessa forma, um NFT
representa a propriedade de um ativo que lhe é subjacente.
As potencialidades práticas dos NFTs ainda estão sendo
exploradas. Desde o mercado da arte, música, produtos colecionáveis, mercado
financeiros e indústria de jogos são apenas alguns dos usos correntes dos
tokens não fungíveis. O mercado imobiliário também tem se aquecido pelo uso dos
NFTs, propiciando venda de percentuais de imóveis [7] ou de casas virtuais para
experimentação e não moradia [8].
A ideia de haver um bem representando outro não é uma
novidade. Desde o Direito romano se reconhecia que a transferência de
propriedade sobre bens imóveis deveria ocorrer mediante a tradição de outro bem
que o simbolizaria. Posteriormente, como forma de facilitar a circulação do
crédito, a técnica jurídica dos títulos de crédito permitiu a corporificação de
um direito em um documento que o representaria. Dessa forma, o conceito
subjacente ao NFT já é conhecido e trabalhado faz séculos, havendo,
especialmente, uma roupagem diferenciada, considerando a sua natureza digital e
a facilidade vendida com a aquisição desse bem.
Em sendo um certificado de titularidade sobre outro bem, o
NFT — como indicado pelo próprio nome — é infungível, diferenciando-se de
outros produtos digitais que também se valem da tecnologia do blockchain, como
as criptomoedas, que são fungíveis. Por sua função econômica precípua, após o
seu registro em blockchain, o NFT passará a ser imutável e único, podendo ser
comercializado individualmente.
Dada a sua própria natureza, estão subjacentes ao NFT riscos
comuns aos demais bens representativos, como o extravio ou fraude do token e
extravio do bem subjacente. Ao corporificar e representar direito real sobre
ativos, o NFT carrega duplo valor tutelável, como ativo representativo e sobre
o seu respectivo lastro, de forma que os riscos a serem cobertos também se
perfazem em ambas as camadas. Esses riscos se encontram potencializados pelo
elemento tecnológico, trazendo circunstâncias novas, como a possibilidade de
perda de acesso à carteira digital, atuação de hackers, falha de hardware, erro
humano, violações de segurança, entre outros. E onde há riscos, há a possibilidade
de se cogitar a contratação de um seguro.
Na prática, portanto, já há interesse legítimo a ser
segurado.
Paralelamente, constata-se no mercado o crescimento da
comercialização do seguro de riscos cibernéticos ou seguro contra riscos
digitais, de aplicação mais ampla. Essa modalidade de seguro oferece cobertura
a riscos de violação de privacidade, de confidencialidade, reparação por danos
causados por ataques cibernéticos, dentre outros. Riscos estes semelhantes
àqueles que os NFTs estão expostos.
Na medida em que o mercado vem aderindo à utilização dos NFTs em variados tipos de transação, a tendência é o desenvolvimento de respostas jurídicas aos problemas enfrentados na prática, existindo uma facilitação à identificação do risco pela própria natureza infungível do bem. Em abril de 2021, foi lançado no mercado de Hong Kong o NFTY, espécie de microsseguro, pioneiro na cobertura do NFT correspondente à canção "Nobody Gets Me", uma canção à época ainda não lançada de Hanjin Tan. A cobertura proposta abarca eventual roubo e perda do referido NFT [9].
Apesar da experiência embrionária, seguros de NFTs ainda não
são uma realidade corriqueira de mercado. Está-se, mormente, em um plano de
expectativas e de projeção da sua utilidade econômica, considerando os desafios
trazidos pela era digital. As sementes para o seu desenvolvimento, contudo, já
estão plantadas. Os riscos cibernéticos já são conhecidos e vêm sendo
precificados, e o blockchain vem se mostrando tecnologia com potencial
disruptivo ainda não totalmente explorado. A união entre a necessidade
econômica e a necessidade de encontrar soluções para problemas concretos é o
cenário ideal para o florescimento de respostas jurídicas.
O aparato normativo-institucional atualmente em vigor parece
ter o ferramental necessário para enfrentar o problema. Obras de arte são
seguráveis. Determinados riscos digitais também são seguráveis. Eventual bem
material subjacente a um NFT também tende a ser segurável. A Susep vem
mostrando adaptabilidade e receptividade a tais desafios impostos pela prática,
bem como vem endossando o desenvolvimento de novos produtos dentro do mercado
de seguros.
Dessa forma, tornar um NFT segurável parece ser mais uma
questão de tempo do que, propriamente, de superação de um obstáculo endógeno ao
arcabouço normativo institucional vigente hoje no Brasil. Assim, os
questionamentos iniciais, aparentemente, se prendem mais a questões
relacionadas ao dimensionamento do risco e viabilidade comercial do que à
viabilidade jurídica.
De fato, tornar um NFT segurável traz o desafio de
precificação, de avaliação do ativo que lhe é subjacente e, em certa medida, do
próprio NFT em si. A sua autonomização em relação ao bem que comprova
propriedade é um elemento adicional de complexidade, ainda mais considerando
que, frequentemente, esse bem também apresenta uma natureza virtual e
imaterial.
Em maio de 2021, a obra "Doni Tondo", de
Michelangelo, criada em 1505, teve a sua representação em um NFT vendida por
US$ 170 mil [10]. Apesar das dificuldades de precificar arte, por envolver
aspectos não materiais, já há know-how sobre o tema. Diferentemente, por
exemplo, do que ocorre no mercado de jogos digitais ou, até mesmo, no que seria
a precificação da representação digital.
No final de 2021, a desenvolvedora Ubisoft foi pioneira na
introdução de NFTs em um jogo digital de grande alcance — conhecidos como AAA,
que trabalham com o conceito de "tecnologia de energia eficiente". O
elemento da colecionabilidade, que tem como pilares a qualidade, escassez,
autenticidade e valor percebido, está presente em vários jogos e dialoga com o
universo dos NFTs. Logo, essa indústria pode ser um campo fértil para o seu
desenvolvimento. Mas o problema central do dimensionamento do risco permanece,
até mesmo pelo caráter dinâmico do risco tecnológico. A sua precificação e o
seu alcance são questões que desafiam essa nova roupagem do contrato de seguro.
Isso porque a tecnologia de armazenamento de imagens traz em si riscos de perda
de qualidade em curto espaço de tempo.
Acrescente-se que o NFT certamente envolverá produtos de uso e economia compartilhada, em típica relação de copropriedade, realidade já vivenciada, por exemplo com os jogos digitais. A interação com o contrato de seguro nesse contexto reclamará a emissão de apólice coletiva, na qual cada proprietário conste como cossegurado.
A heterogeneidade dos ativos atrelados aos NFTs constitui,
dessa forma, um dos grandes desafios a serem enfrentados quando da estruturação
jurídica de um modelo de contrato de seguros. O mesmo pode ser dito a respeito
da inovação quanto ao seu conteúdo.
Registre-se, a esse respeito, a relevância de que os
mecanismos de registro e de proteção das criações intelectuais relacionadas ao
blockchain e aos NFTs em si sejam objeto de atualização por parte das
autoridades competentes. Uma demonstração inequívoca dessa realidade, a
impactar na cobertura securitária dos NFTs, sobretudo com relação à
legitimidade para contratação do seguro. Dessa nova realidade, infere-se a
necessidade de investimento e desenvolvimento de registros próprios de
criptografia, por parte do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi)
a fim de que a propriedade imaterial referente a esses ativos digitais seja
objeto de proteção específica e especializada, o que sem dúvidas poderá
resvalar na cobertura securitária do bem. Percebe-se, assim, que há fundamentos
jurídicos para o desenvolvimento do seguro em tela, sendo importante, contudo,
a atualização dos mecanismos disponíveis, a fim de assegurar a base necessária
para que tais conceitos possam se desenvolver.
Outro aspecto relevante diz respeito à fundamentalidade da
ethereum, segunda criptomoeda mais famosa do mundo, atrás somente do bitcoin,
para o NFT, uma vez que a chave criptográfica do NFT é armazenada no blockchain
ethereum, que serve de base para a gravação de informações extras responsáveis
por diferenciar uma ETH (moeda virtual) de um NFT (ativo único). É importante
antecipar os reflexos desse cenário específico para a contratação do referido
seguro, à medida em que poderá delimitar o contexto pertinente à criação e
execução das normas pertinentes ao seguro.
A segurança jurídica sempre buscada pelo Direito foi
desafiada a se adaptar à disrupção provocada pela tecnologia. Mas o medo do
novo não pode ser um empecilho para a criação e o desenvolvimento de soluções
legais diante de um problema real jurídico e econômico. É nesse contexto que se
insere o pretenso seguro de NFT. Diante do valor do ativo subjacente, de seu
valor econômico próprio e dos crescentes riscos digitais, haverá interesse
legítimo a validar a sua proteção. Cabe ao mercado segurador encontrar a melhor
conformação negocial.
Se, outrora, o risco de naufrágio era motivo de preocupações
para os comerciantes genoveses, hoje, o risco de fraude e extravio (lato senso)
de um NFT traz inquietações, no fundo, não tão diferentes quanto àquelas dos antepassados
da Itália renascentista. Por certo, a roupagem e os riscos são diversos, mas o
legítimo interesse segurável aparece em ambas as situações, desafiando a
criação de modalidade nova de contrato de seguro que ofereça garantia contra os
riscos advindos da aquisição de NFTs.
* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e
Thiago Junqueira, bem como por convidados.
[1]
https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/bem-vindo-ao-criptoverso-tecnologia-do-bitcoin-extrapola-financas-inicia-revolucao-no-cotidiano-25392372.
[2] BECK, Ulrich. Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt am Main: Surkamo, 1986, p. 15-20.
[3] WALD, Arnoldo. A Contratualização do Direito Societário.
Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 26, p. 21,
out./2004, DTR n.º 2004/597.
[4] IBM Security. Relatório do Custo de uma Violação de
Dados 2021, p. 12.
[5] "Artigo 8º - A Susep disciplinará os requisitos
para o credenciamento e o funcionamento das sociedades iniciadoras de serviço
de seguro, que são participantes, de forma obrigatória, do Open Insurance,
devendo ser observada, entre outras, segurança cibernética, governança,
inclusive sobre dados, práticas de conduta no que se refere ao relacionamento
com o cliente e capacidade financeira".
[6] "Artigo 19 - Os procedimentos e controles para
autenticação de que trata esta seção devem ser compatíveis com a política de
segurança cibernética da sociedade ou de gestão de riscos e controles,
previstas na regulamentação em vigor".
[7] https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2021/10/23/professora-de-82-anos-de-porto-alegre-compra-primeiro-apartamento-digitalizado-do-brasil.ghtml.
[8]
https://blueprint.apto.vc/de-bitcoin-a-nft-as-inovacoes-em-uso-no-mercado-imobiliario.
[9] https://insuranceasia.com/insurance/exclusive-in-focus/how-yas-microinsurance-puts-price-non-fungible-tokens.
[10]
https://news.artnet.com/art-world/uffizi-gallery-michelangelo-botticelli-nfts-1969045.
Priscila Mathias Fichtner é doutora em Direito
Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj),
mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São
Paulo (USP) e sócia no escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.
Claudio Miranda é doutorando e mestre em Direito de Empresa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e sócio no escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.
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