Seguros e guerra: vinhos novos em odres velhos?
18, Mar. 2022
Fonte: CQCS
Para além dos impactos humanitários, econômicos e
diplomáticos globais, a invasão da Ucrânia pela Rússia expõe dois principais
reflexos, agora nos contratos de seguros: os incrementos nos riscos segurados
pelos seguros de cyber insurance dadas as particularidades do conflito e,
ainda, nos contratos de seguros de danos e pessoas em geral desafiando a
interpretação das usuais causas de exclusão de cobertura por guerras,
destacando-se, por exemplo, os contratos de seguros de vida, marítimo, aéreo,
rural [1], de crédito [2] etc.
A propósito dos impactos da invasão da Ucrânia pela Rússia,
segundo informações da agência Fitch Ratings, as particularidades desta guerra
incrementaram os riscos de cyber ataques. Apenas o ataque do malware “NotPeya”
teria causado prejuízos de U$ 1,4 bilhões a um só segurado [3]. Isto porque
para além de um conflito armado, a guerra em curso apresenta uma batalha
paralela de desinformação, fake news e constantes ataques cibernéticos [4].
Pode-se afirmar que é praxe de mercado incluir no rol de
causas excludentes de cobertura riscos causados por guerra ou por atos hostis.
Algumas dúvidas emanam ao analisarem-se tais exclusões: como interpretar as
exclusões nos casos em que não se consegue identificar o autor do cyber ataque?
Como a seguradora comprovará a relação entre o incidente cibernético e a
guerra? Um cyber ataque praticado no contexto da guerra pode ser caracterizado
como ato de guerra para fins de exclusão da cobertura? Quando a apólice não
excluir e nem incluir o risco cibernético, como interpretar tal silêncio, à luz
do que se convencionou chamar de sylent cyber coverage? Qual a importância que
os segurados devem dar para a saúde cibernética interna, com a imposição de
autenticação em multifatores, por exemplo?
As exclusões de guerra têm uma longa história em seguros,
mas a sua aplicação em incidentes cibernéticos representa uma novidade,
justificada pela própria sofisticação tecnológica dos últimos anos. Um produto
que já sofre com uma inegável dificuldade de identificar adequadamente os
riscos a que a companhia segurada está exposta, bem como de precificar o prêmio
correspondente, se vê diante de desafios ainda mais nebulosos, provocados pela
métrica da guerra moderna, cujos reflexos serão imensuráveis à nível global.
Ressalvadas as diferenças inerentes a cada, o presente
embate não desafina daquele iniciado nos meados do ano de 2020, e que
prosseguiu meses a fio, com relação à pandemia do novo coronavírus, posto que
usual, como se disse, constar nas apólices de seguros a exclusão de riscos de
pandemia (assim como, v.g., guerras e terremotos) que teriam impactos
devastadores no grupo segurado e na sociedade. Lá e cá, a estabilidade
financeira e a capacidade de pagamento de reivindicações das seguradoras
ficariam fortemente comprometidas, tendo em vista a grande concentração, no
tempo e espaço, de sinistros com mensuração atuarial praticamente inalcançável
[5].
Já se definiu nesta coluna o seguro de riscos cibernéticos
como aquele apto a segurar danos decorrentes de “vazamentos de dados,
paralisação de funcionamento de servidores, colapso de softwares e hardwares”
[6]. O interesse segurado nessa espécie contratual, portanto, é a higidez e
incolumidade dos sistemas cibernéticos cobertos pela apólice.
No âmbito da cobertura dos riscos cibernéticos, observa-se
certa tendência de mercado em impor aos segurados que adotem medidas eficazes
de segurança informática em suas operações. O próprio legislador brasileiro, na
Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/18), fomenta uma postura
proativa do agente de tratamento de dados pessoais, incentivando-o a adotar
previamente à ocorrência de qualquer dano, a “adoção de medidas para prevenir a
ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais” (artigo 6º
VIII) e “utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os
dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas
de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão” (artigo 6º VII),
induzindo a um regime de responsabilidade civil proativo na LGPD [7].
Indaga-se se a não adoção de medidas preventivas à
ocorrência do dano ensejaria, à luz do Código Civil Brasileiro, a perda de
cobertura por agravamento do risco. Afora a acesa controvérsia doutrinária a
respeito da necessidade do elemento intencional para caracterizar o agravamento
do risco apto a ensejar a perda de cobertura, na forma do artigo 757 do Código
Civil [8], pode-se afirmar que o alto grau de descuido na adoção de medidas
preventivas basilares em estruturas tecnológicas poderá ensejar a perda da
cobertura, ainda que de forma não intencional. Ora, se ao deixar “o carro
estacionado na rua, com as portas destrancadas, os vidros abertos e a chave na
ignição afasta a possibilidade de indenização do seguro pelo furto do veículo”
[9], com igual razão perderá direito a indenização o segurado que não for
diligente ao deixar de adotar medidas razoavelmente eficazes de proteção dos
dados pessoais relacionados à sua operação, de seus servidores e seus sistemas essenciais,
sendo irrelevante se tal comportamento deu-se de maneira intencional.
É preciso concluir, portanto, que a adoção de medidas
preventivas em tempos de cyber ataques e cyber guerras é conduta que
legitimamente se pode esperar do segurado, sobretudo em decorrência dos deveres
de lealdade e cooperação que devem guardar segurados e seguradores por
incidência direta da boa-fé objetiva nos contratos de seguro. Mas o que seria
razoável de se esperar de um segurado precavido, especialmente no cenário atual,
em que grandes batalhas tecnológicas são travadas pela conquista de “fronteiras
virtuais”?
Ao dever de atuar preventivamente em sua estrutura
tecnológica interna, soma-se o — já conhecido — dever do segurado de comunicar
ao segurador imediatamente quaisquer incidentes que possam ser caracterizados
como sinistros [10], dever esse que exige, em tempos de cyber ataques, postura
mais proativa se comparado a demais espécies de sinistros, considerando que os
danos ocorrem em segundos — ou em seus milésimos. À medida em que os sinistros
se tornaram mais sofisticados, espera-se, em igual tempo e de outro lado,
acentuação do dever de lealdade, transparência e cooperação do segurado junto
ao segurador, atuando a boa-fé objetiva como uma via de mão dupla e não só do
segurador ao segurado.
As interseções entre seguros e guerra residem, em sua
maioria, nas regras de interpretação que se lançarão sobre as cláusulas de
exclusão de cobertura baseadas na guerra. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e
a criação da ONU (1945), bem como com a promulgação da carta das Nações Unidas,
esperava-se que a paz mundial estivesse sido alcançada e que a intensa
globalização e a dependência energética, financeira e produtiva entre nações
impediria a eclosão de novos conflitos bélicos mundiais. Ao subscrever qualquer
risco nas últimas décadas, portanto, nem mesmo o mais avisado dos seguradores
poderia prever a eclosão de uma guerra. Por essa razão, por os riscos serem
dimensionados não prevendo a eclosão de guerras mundiais é que o mercado adotou
por praxe a inclusão de cláusulas excludentes de cobertura baseadas em guerra —
e, por igual motivo, é raríssimo o segurado que, por mais precavido que seja,
contrate cobertura específica para riscos provindos de guerra. Reacendem-se,
com efeito, as divergências a respeito das regras de interpretação dos
contratos de seguro — e, em especial sobre as cláusulas excludentes de
cobertura.
Por força do disposto no artigo 757 e 760 do Código Civil, o
segurador se obriga a garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos
predeterminados, razão pela qual devem ser interpretados restritivamente. Ao
expressamente prever a não cobertura de danos decorrentes de guerras, a
seguradora cumpre fielmente com seus deveres de transparência, lealdade e cooperação
com o segurado [11].
Tal limitação decorre da dúplice função social do sistema
nacional de seguros: de um lado socializa riscos, em cumprimento do artigo 3º,
I da Carta da República e, de outro, assegura que os danos cobertos sejam
indenizados, atendendo ao direito fundamental da reparação integral, evitando
que a vítima reste desprotegida.
Para que o sistema securitário funcione de maneira
controlada, é preciso atender a princípios que permitem que as instituições se
integrem no processo econômico e social do país, se aperfeiçoem e consigam
preservar a sua liquidez e a sua solvência, nos exatos termos do artigo 5º, I,
IV e V, do Decreto-Lei nº 73/1966.
Diretamente conectado à função social do seguro está o
princípio do mutualismo, segundo o qual “todos os participantes contribuem com
um valor relativamente baixo, em relação ao bem segurado, para que a pessoa que
tenha o prejuízo naquele período receba a indenização” [12]. É pressuposto
básico para manter a liquidez do sistema de seguros privados, à medida em que
diminui o risco assumido pela companhia seguradora diante de um risco ou de um
inadimplemento individual, permitindo a manutenção das suas operações sem
prejuízo à coletividade, conforme já assentou a jurisprudência do STJ em
numerosos julgados [13].
Ao limitar, portanto, os riscos decorrentes da guerra, as
seguradoras assim o fazem em cumprimento a princípios essenciais, já conhecidos
e indispensável ao direito dos seguros — especialmente a predeterminação de
riscos, aos limites do contrato e ao mutualismo.
Sem prejuízo, assim como se ressalvou quanto ao novo
coronavírus, é difícil projetar o efetivo impacto da guerra nas relações
securitárias. O velho equilíbrio entre a tutela do segurado, a saúde financeira
da seguradora e a coletividade segurada dependerá, para além da boa-fé dos
envolvidos em cada regulação de sinistro, de uma análise bastante cuidadosa de
cada caso concreto, sem decisões generalizadas.
Por tudo que se viu até aqui, todavia, os novos sinistros
que decorrem da guerra amparar-se-ão nas velhas regras interpretativas que
regem os contratos de seguros. De “novo”, a guerra, e de velho, os remédios
jurídicos oferecidos pelo ordenamento. Pode-se dizer que, pelo menos por ora,
não será preciso que o intérprete recorra a novas regras interpretativas ou que
seja preciso radical adaptação legislativa para que sinistros decorrentes de
ataques cibernéticos e/ou quaisquer outros decorrentes de guerra tenham justa
resposta jurídica. Em vez de inventar-se a roda, é preciso que o exegeta procure
no ordenamento remédios já bem assentados — como a boa-fé e seus influxos sobre
os contratos de seguro, as regras de interpretação das cláusulas excludentes e
tantos outros parâmetros hermenêuticos contidos no ordenamento — para os novos
problemas.
Seguros e guerra, portanto, equiparam-se à vinhos novos em
odres velhos. É como infere-se da parábola dos Vinhos Novos em Odres Velhos, no
Evangelho de Lucas no Novo Testamento: “Ninguém tira remendo de vestido novo e
o põe em vestido velho; de outra forma rasgará o novo, e o remendo do novo não
condirá com o velho. Outrossim ninguém põe vinho novo em odres velhos; de outra
forma o vinho novo arrebentará os odres, e ele se derramará, e estragar-se-ão
os odres. Pelo contrário vinho novo deve ser posto em odres novos. Ninguém que
já bebeu vinho velho, quer o novo; porque diz: O velho é bom” [14].
Acesse matéria completa em: https://www.cqcs.com.br/noticia/seguros-e-guerra-vinhos-novos-em-odres-velhos/
Acesse as edições mais recentes das publicações do Mercado de Seguros
Revista Apólice: https://www.revistaapolice.com.br/2022/03/edicao-273/
Revista Cobertura: https://www.revistacobertura.com.br/revistas/revista-cobertura-238-2-2/#1
Revista Insurance Corp: http://insurancecorp.com.br/pt/content/pdf/ic_ed40_2022.pdf
Revista Segurador Brasil: https://revistaseguradorbrasil.com.br/edicao-170/
Revista Seguro Total: https://revistasegurototal.com.br/2022/03/03/transacoes-movimentam-o-mercado-segurador/
Revista de Seguros: https://cnseg.org.br/publicacoes/revista-de-seguros-n-918-8A8AA8A37E8E18A1017EC49F825E169D.html
Conjuntura CNseg :
Revista Insurtalks: https://www.flipsnack.com/FEDBBBDD75E/revista-insurtalks-1-2/full-view.html
Revista Brasil Energia: https://editorabrasilenergia.com.br/wp-content/uploads/sites/1/flips/132307/Bia473/index.html
Curso Preparatório e Certificação Profissional Internacional em Gestão de Riscos.
Associados ABGR têm desconto para inscrições antecipadas. Solicite mais informações através do e-mail: abgr@abgr.com.br
MBA ENS - Gestão Jurídica em Contratos de Seguro e Inovação
Informe-se e inscreva-se em : http://mba.ens.edu.br/curso/gestao-juridica-em-contratos-de-seguro-e-inovacao-ead?utm_source=linkedin&utm_medium=post-impulsionado&utm_content=2022-01-26#
Tweet to @abgr_brasil Tweet